Um psicólogo camarada disse o seguinte essa semana: “O que é difícil de ser falado é importante de ser dito”. Começo essa tribuna com esse intuito, de dizer coisas importantes mas difíceis de serem ditas.
O Movimento Estudantil vive pela performance, o que é importante mas insuficiente.
“Nas ruas, nas praças…
Quem disse que sumiu…
Aqui está presente,
O movimento Estudantil!”
Essa é talvez a “palavra de ordem” mais cantada nas últimas décadas pelo Movimento Estudantil. As palavras de ordem tem um papel central na luta e nas perspectivas do movimento. O que essa palavra de ordem expressa? Vamos destrinchar…
“Nas ruas, nas praças…” o sentido desse trecho é retomar, para o tempo atual, o histórico de lutas massificadas do Movimento Estudantil, principalmente (mas não somente) do período da ditadura. Onde era comum que ruas e praças fossem tomadas por hordas de estudantes que realizavam comícios, plenárias e manifestações. Principalmente junto a outros setores em luta.
“Quem disse que sumiu…” Eu também me pergunto! Mas ouso responder: NINGUÉM! Ninguém disse. A Ditadura realmente buscou destruir o Movimento Estudantil, principalmente aquele mais combativo, especialmente de 1964 até 1970. A sede da UNE foi queimada um dia após o golpe, centenas de pessoas presas, outros assassinados… Porém, todo o processo de transição, da ditadura para a democracia burguesa atual, conhecido como transição “lenta, gradual e segura” orquestrada pelos militares se deu considerando a existência do Movimento Estudantil, visando não mais seu extermínio (até porque já não era mais necessário, pois já tinha sido feito a partir das lideranças) mas a sua acomodação passiva, sua delimitação mais como espaços institucionais do que como movimento em si. Não é sem razão que a ditadura incentiva a criação de associações atléticas enquanto proibia Centros Acadêmicos, é exatamente para minar as forças desse segundo, delimitando seu escopo apenas como um organizador político e não como um organizador da vida em seus diversos aspectos, como era anteriormente.
Nos últimos 30 anos, com o avanço tanto do neo-liberalismo quanto do petismo (e mais atualmente se tornou indissociável tratar de um sem tratar do outro no Brasil, basta ver Haddad impondo teto de gastos), o que vimos foi a institucionalização das entidades estudantis a seu nível mais extravagante, com a UNE e ANPG servindo basicamente como palanques eleitorais, com DCEs sendo basicamente termômetros para as diversas forças do movimento estudantil (que pipocavam a todo instante) se compararem umas com as outras e CAs se orgulharem não mais por seu nível de mobilização, de organicidade com aqueles que deveriam representar ou pela elevação da consciência mas por seu nível de organização institucional, se conseguiu ou não ter um CNPj, se conseguia ou não ter boas conversas com as instituições e direções se conseguia realizar eventos similares aos que a instituição tem por obrigação fazer.
“Aqui está presente” Esse é o ápice da palavra de ordem e talvez, o trecho mais problemático, implicitamente ao defender tal “presença” sem qualificar QUAL movimento está presente, o que se está defendendo é que basta existir pessoas minimamente organizadas, um movimento que exista, para que as mudanças se realizem. Como se o movimento fosse avançar por sua razoabilidade e presença e não necessariamente por sua força.
“O movimento estudantil”, como se fosse um bloco, unificado, que corre sempre em prol dos mesmos interesses e que há homogeneidade e constância. Não é isso que ocorre, tal unidade não deve vir por princípio e sim ser conquistada a partir da própria realidade das lutas.
Essa reflexão sobre a palavra de ordem é apenas para ilustrar como o Movimento Estudantil muitas vezes se volta para dentro de si próprio, avançando pouco nas lutas e organização concretas de sua classe enquanto cria uma imagem de si próprio que é muito gloriosa. Essa postura pode levar, a médio prazo, para o reacionarismo das várias parcelas do Movimento que lutam em um período e, logo após deixarem aquela luta, passam a desmobilizar o que acontece depois por acreditarem que só o que fizeram “em sua época” era válido, bem organizado e efetivo. É possível ver isso muito com as posturas paternalistas de pós-graduandos e professores, por exemplo. (Sobre o fato do Movimento Estudantil estar ou não em uma fase reacionária vocês vão ter que vir falar comigo presencialmente pois ainda não escrevi de forma mais sistemática sobre isso.)
O uso da performance, enquanto uma maneira de aumentar o alcance das pautas, pode ser útil e certamente tem seu papel, mas é um problema quando o movimento vive dela, quando não consegue cumprir seu papel político em aumentar a consciência para a luta, organizar os grandes grupos de estudantes para questionar as estruturas de poder.
Os dois papéis das Greves…
Ao longo da história e nos diversos movimentos, as greves foram utilizadas como uma importante tática de luta, sendo inclusive proibidas em contextos de maior repressão. Com o início de uma greve, que muitas vezes se dá de forma espontânea, abre-se possibilidades para mudanças tanto para fora, quanto para dentro do movimento.
Uma greve sempre possui alguma pauta, mais ou menos delimitada, pois ninguém se mobiliza nesse nível em torno de nada ou de assuntos meramente cotidianos, para o engajamento necessário a greve é preciso um convencimento de que as pautas são necessárias e, ao mesmo tempo, que os pedidos por essas pautas não serão conseguidos com outras formas de lutas “mais pacíficas”, via de regra as greves emergem em momentos em que as outras possibilidades de organização de reivindicar estão fechadas, por exemplo quando não existem espaços onde a voz de quem reivindica será ouvida.
Foi em um desses contextos que emerge a greve da USP, com estudantes sofrendo dia-a-dia pelo desinvestimento na Universidade, especialmente (mas não somente) pela falta de professores e problemas de permanência. A greve foi instaurada como a tática necessária e única de mobilização principalmente porque, após a menção de uma possível greve o diretor da FFLCH, Paulo Martins ter fechado todos os prédios, executando uma espécie de “piquete preventivo”, tal medida, totalmente anti-democrática e absurda, além de desrespeitar os estudantes demonstrou que não haveria disposição dessa direção em sequer ouvir os estudantes que se manisfestavam contra a precarização de seus cursos. Esse movimento se alastra rapidamente por todos os institutos da USP porque as pautas eram gerais, resumidas em três: + Contratação de professores, + Contratação de Funcionários, por melhores condições de permanência/pela alteração no PAPFE.
Em um primeiro momento a greve cumpre esse papel, o papel de reivindicação pelas melhorias objetivas e pelas soluções concretas das “lutas econômicas”, mas conforme o movimento ganha corpo, as reuniões com a Reitoria vão acontecendo e as pessoas vão se formando na luta, rapidamente a dimensão econômica da luta se converte em “luta política”, o ápice disso se dá quando a reitoria fecha o debate e se nega a negociar com os estudantes após terem todos os seus “argumentos” econômicos contra as reivindicações dos estudantes questionados.
Nesse cenário, de percepção do movimento sobre o próprio caráter da luta, da transição da luta econômica para a luta política, onde fica mais explícito que os problemas não são resolvidos devido a um PROJETO e não por falta de dinheiro (ou falta de alguém apontando os problemas de uma maneira bastante razoável) os estudantes começam a desanimar, principalmente pela percepção de que “o buraco é mais embaixo”, várias das pautas precisam passar por outras instâncias ainda mais conservadoras do que a Reitoria (como é o caso do gatilho automático que precisa passar pelo CO, Conselho Universitário, onde a maioria dos votos são de diretores de unidades), outras implicam a necessidade de questionar os próprios parâmetros orçamentários da universidade (em 2017 a USP passou a funcionar a partir de “parâmetros de sustentabilidade”, que na prática é uma espécie de teto de gastos/limite orçamentário para determinados fins).
É também nesse momento que a maioria dos cursos passam a discutir com as respectivas diretorias, em alguns locais foi possível conversar e mesmo negociar alguns termos favoráveis às pautas locais do movimento. Todos esses elementos somados fizeram o movimento começar a decair dia-a-dia, semana-a-semana… A grande maioria dos estudantes não conseguiam mais acompanhar todas as movimentações dos comandos de greve, nem as negociações, depois as assembleias foram esvaziando e até que o movimento estudantil voltasse novamente a seus velhos hábitos performáticos de simplesmente demarcação por princípio entre as forças que dirigem o movimento.
A greve tem dois papéis, o da luta econômica, pelas pautas que surgem com a construção do movimento e o da luta política, que compreende que além dessas pautas existe uma estrutura que é a razão desses problemas existirem e que precisa ser mudada. Nessa transição entre um e outro é necessário que haja a elevação da consciência daqueles que estão em movimento, que eles se organizem mais e melhor, eventualmente até de forma militarizada, mas não foi isso que ocorreu. O movimento ainda se encontra bastante desorganizado e reconhece pouco as dinâmicas gerais ou como derrubá-las.
É preciso ser consequente.
Com a percepção de que a greve não cumprira todas as suas reivindicações econômicas e também não alcançará o nível de consciência necessário para a disputa política o movimento se divide em dois grupos:
- Aqueles que querem voltar no momento em que as pautas econômicas tinham o reconhecimento dos estudantes.
- Aquela que acreditam que é necessário preparar o movimento, acumular forças, para a disputa política que cause rupturas mais fundamentais.
O primeiro movimento, insiste que por não termos conseguido todas as pautas que reivindicamos a greve sairá derrotada, que devemos avançar em “táticas mais radicais”, etc. Quero desvelar aqui o caráter performático dessas falas no sentido de que hoje às táticas de ação direta não são expressões do movimento mas para além disso, não há no movimento nenhuma estrutura capaz de proteger os estudantes das represálias que vem quando tais táticas são assumidas. Qual Centro Acadêmico, DCE, Comando de greve tem recursos para pagar advogados de estudantes isolados que se aventurarem em ações diretas isoladas? As pautas foram construídas, para os estudantes, de uma forma que justifique ao coletivo a execução de práticas de ação direta? (Ocupações mais ostensivas, quebra de grades e/ou outros aparelhos da reitoria, etc)
O segundo grupo também compreende que a greve não obteve um sucesso em suas pautas econômicas mas que deu os primeiros passos para para a construção da luta política, que deve ser aprofundada. Nesse sentido, é interessante notar que estudantes que antes abaixavam a cabeça para andar em seu próprio instituto hoje bancam a negociação com a diretoria, criaram a “auto-estima” militante a ponto de questionarem as estruturas de poder. Ao mesmo tempo, essa consciência é bastante assimétrica e ainda bem restrita, por isso as várias iniciativas de aprofundar as discussões, os grupos de debates, os fóruns, e mesmo as tribunas.
Ambas as formas de encarar o movimento tem consequências, na verdade tudo tem. O que devemos compreender é que as consequências das propostas do primeiro grupo podem ser drásticas, no sentido da perseguição, enquanto a sua proposta de movimento é retrógrada, no sentido de querer fazer o movimento voltar a um estágio em que já não se encontra mais onde apenas as pautas econômicas eram centrais. Enquanto as consequências do segundo grupo é que não vamos conseguir avançar com a tática de greve atual muito mais do que avançamos até então, e que portanto, é necessário o fortalecimento de outros instrumentos, tais como Centos Acadêmicos, DCEs etc… mas também uma formação e disputa de consciência mais concisa e massiva do que a existente até então.
Para que o movimento estudantil não seja apenas performance e palavras de ordem vazias é necessário ter noção dessas consequências para a tomada correta de decisão, tanto para entrar quanto para sair de determinada tática sem perder o que ela trouxe de avanços.
Contra todos aqueles que advogam que essa greve foi uma vitória plena porque a reitoria concedeu algumas migalhas manifesto toda minha repulsa, a confiança depositada pelos estudantes em vocês não pode admitir tais falsificações
Mas também contra aqueles que enxergam que por não termos conseguido tudo que pedimos a greve foi uma derrota plena, que não devemos recuar, aponto que antes da Revolução Russa de 1917 houve a grande revolta de 1905, que não conseguiu tudo o que era reivindicado mas que estabeleceu os Conselhos (soviets) onde o povo encontrou formas de organizar a própria vida e assim sequer depender do poder instituído, fazendo com que antes dele ser derrubado ele não fosse sequer necessário!
É isso que devemos fazer nesse momento, elevar a luta na universidade rumo à Universidade Popular, executar nossas reivindicações, somar forças, trabalhar a unidade e nunca, nunca esquecer quem representa os inimigos!