As contratações são suficientes?
Uma avaliação das promessas da Reitoria
Henrique Felix, 22/10/2023
Agradecimento: esse texto só foi possível com os acúmulos dos GTs de Dados, plenárias, reuniões com o comando de greve e conversas com colegas grevistas
- Introdução
Quantas vezes você ouviu que a greve não fazia sentido porque a Reitoria já tinha previsto contratações suficientes na USP? O número prometido, de 879 contratações de docentes, faria a USP voltar ao patamar de 2014, época em que teve mais docentes em sua história. O problema que vivemos hoje estaria plenamente resolvido e a greve não teria razão de ser. Para engrossar o caldo, a Reitoria prometeu contratar mais 148 docentes, referentes às “perdas” de 2022. Com isso, 1.027 contratações seriam efetivadas, supostamente garantindo o patamar de 2014.
Que se diga de pronto: as contratações da Reitoria não estão nem perto de sanar o déficit histórico de docentes na USP. O principal objetivo deste texto é mostrar por que essa narrativa de “problema resolvido” passa longe da verdade.
Sabemos que faltam docentes na USP, mas exatamente quantos? Como estimar o tamanho desse déficit? A solução da Reitoria de voltar a 2014 aparenta fazer sentido: olhar para o ponto que foi “melhor” e medir o quão longe estamos dali. Mas qualquer pessoa que entra em contato com a dinâmica demográfica e o funcionamento institucional da USP se dá conta de que esse método tem várias falhas.
Na verdade, é difícil estimar o déficit, e impossível definir “O Verdadeiro Déficit”, pois existem escolhas políticas e metodológicas envolvidas. Seria ótimo se cada unidade pensasse sobre as reais necessidades do Projeto Político-Pedagógico de seus cursos, ouvindo estudantes e funcionáries, e que isso fosse sincronizado por uma autoridade central paritária em um projeto político coerente para a USP. A Reitoria poderia ajudar nesse esforço. Mas já que isso não está sendo feito, nós do corpo discente podemos pelo menos recorrer a métodos iniciais – limitados mas também esclarecedores – usando os poucos dados publicizados pela USP. Isso foi parte do que fizemos nos GTs de Dados, e relato aqui alguns dos acúmulos que tivemos.
No tópico a seguir, reviso as promessas da Reitoria e demonstro que são insuficientes para voltar ao patamar de 2014 considerando uma projeção de saída de professores. Nos tópicos posteriores, revisito a escolha política desse patamar de 2014 e demonstro que ela é inadequada e oportunista. Por fim, faço algumas considerações sobre o orçamento da USP e um desabafo quanto à situação informacional do nosso movimento.
- O tempo existe: projeções de saída de docentes
Vamos supor em um primeiro momento que 2014 seja um bom ponto de referência. A Reitoria afirma que, para voltar àquele patamar, as contratações que ela promete já seriam suficientes. Isso é verdade?
A Reitoria quer fazer parecer que contratará 1.027 docentes no curto espaço de dois anos, que ela coloca como tempo recorde. No entanto, como ficará mais claro no último tópico deste texto, a USP tem regras internas de planejamento orçamentário. As linhas gerais do planejamento para o resto desta gestão, período que vai de 2022 até 2026, já foram aprovadas, e estão contidas no Planejamento Plurianual 2023-2026 da USP. E, de acordo com este planejamento oficial da Reitoria/USP, e também com a carta de compromissos da greve imposta pela Reitoria, os números discutidos na negociação se referem às contratações previstas de 2022 até o final de 2026.
Essa é uma das ocasiões em que o óbvio precisa ser dito: o tempo existe. Docentes, tal como qualquer outra categoria, saem da universidade ao longo dos anos – falecem, se aposentam, são exonerados, etc. Temos então que contabilizar entradas e saídas ao longo desse período de 5 anos para saber o saldo líquido de docentes.
O quesito “saídas” tem algumas nuances. Por exemplo, uma licença representa a saída de uma professora? Mortes também contam? E aposentadorias, exonerações, afastamentos delongados etc? Nada disso a Reitoria esclarece, e não temos bases de dados públicas sobre esses números específicos. O que temos são os dados do Portal da Transparência da USP, que nos dizem quantes docentes estão na folha de pagamentos a cada mês. Se contabilizarmos as entradas e saídas anuais de números USP (i.e. pessoas) na categoria “Docente”, podemos obter uma estimativa de quantes se desligaram da USP mensalmente, embora não seja possível saber a modalidade de desligamento. Para não cair no risco de contabilizar como entradas e saídas pessoas que foram removidas momentaneamente da folha de pagamentos e depois voltaram (exemplo: afastamento não remunerado), contabilizei apenas as entradas que são novas considerando todo o passado da base, bem como saídas definitivas que nunca mais retornaram à base. A cada ano da base de dados (2014-2023), essas saídas definitivas representaram no mínimo 93,5% das saídas totais, então vou usar esse número para estimar saídas definitivas futuras.
Em 2022, houve 596 saídas da base. Usando a estimativa de 93,5% de saídas definitivas, temos 596 vezes 93,5% = 557 saídas definitivas em 2022. Para 2023, existe apenas um número parcial (até setembro foram 299 saídas), então vamos fazer projeções para todo o quadriênio 2023-2026. Considerando apenas os anos completos dessa base de dados (2015-2022), concluímos que saíram da folha em média 315 docentes por ano, ou 5,4% da base total de docentes por ano. Multiplicando esse número por quatro e ponderando pelo nosso patamar mínimo de 93,5%, temos então: (a) 557 saídas definitivas estimadas em 2022, mais (b) 315 vezes 4 vezes 93,5% = 1.178 saídas definitivas projetadas para o quadriênio 2023-2026, totalizando (c) 1.735 contratações necessárias apenas para manter, no fim de 2026, o mesmo nível do fim de 2021. Considerando a diferença entre 2014 e 2021, que segundo o Anuário Estatístico da USP era de 900 docentes, chegamos a 900 + 1.735 = 2.635 docentes. Ou seja, por essas estimativas, para que a atual Reitoria entregue ao final de sua gestão um número de professores equivalente ao de 2014, é preciso que contrate 2.635 docentes, 1.756 a mais que o prometido – ou 3 vezes o prometido!
É possível complexificar essa análise em vários níveis. Por exemplo, podemos estimar apenas o número de aposentadorias nos próximos anos com base no tempo médio de permanência no cargo (dado também disponível no Portal). Ao fazer isso, o GT de dados do Instituto de Biologia apresentou resultados preliminares estimando uma média de aprox. 175 aposentadorias por ano, podendo ser maior no futuro próximo devido ao envelhecimento da base de docentes em decorrência da queda de contratações de 2014 até aqui. Ao fazer exercício semelhante, chegamos à mesma conclusão: quando se considera projeções de saída de docentes, constata-se que a atual gestão não entregará um saldo de docentes sequer próximo ao nível de 2014.
Do que foi explorado até aqui, fica evidente que existem várias nuances quando falamos de saída de docentes da USP. O que podemos perceber é que claramente a Reitoria está manobrando em cima dessas nuances. Vejamos. Vamos retomar a “oferta” que a Reitoria impôs ao comando de greve.
Primeiro, no ponto 1 de sua carta, ela fala que “disponibilizará imediatamente 1027 vagas docentes, sendo que 879 já faziam parte da política de contratação da Universidade”. Ora, o planejamento plurianual mencionado antes, que já vinha sendo discutido e tinha uma versão avançada desde 2021, já previa a contratação de 876 docentes no período de 5 anos de 2022 até 2026 (que a Reitoria apenas atualizou para 879). A própria Reitoria confessa que 559 dessas vagas já tinham sido disponibilizadas ano passado, cerca de 240 das quais já contratadas e outras foram relativas a perdas de 2021 ou até anteriores. Ou seja, a Reitoria se comprometeu a, no máximo, adiantar contratações planejadas para ocorrer ao longo de 5 anos, várias delas já ocorridas nos dois primeiros anos desse período e algumas voltadas a repor perdas de períodos passados (veja como é capcioso o uso do termo “disponibilizará”). Se a USP realizar todas essas contratações agora, o que acontecerá nos próximos 3 anos? Simples: não há previsão de nenhuma contratação a mais.
No mesmo ponto 1 da carta, a Reitoria também coloca que “148 novas vagas serão distribuídas de acordo com as perdas ocorridas em cada unidade no ano de 2022”. Devemos primeiro reconhecer que essas 148 contratações ainda não constavam do planejamento orçamentário e parecem ter sido uma conquista influenciada pela greve. Porém o termo “perda” aqui é impossível de saber o que significa. Vimos que no ano de 2022, 596 números USP saíram da folha de pagamentos de docentes da USP, sendo 557 perdas estimadas como definitivas. No mesmo ano foram 208 entradas definitivas, com saldo então de -388 docentes (perdas líquidas). Cabe ponderar, então, o que é “perda” segundo a Reitoria? Como podemos reproduzir esses dados?
Em seguida, no ponto 2 da sua carta, a Reitoria coloca que “mantém a proposta de até o final de sua gestão realizar a reposição automática de todos os professores exonerados”. Destaque primeiro para o termo “proposta”. Já existe um planejamento oficial aprovado de orçamento para contratações “até o final de sua gestão”, mencionado acima, e esse planejamento já inclui (de maneira insuficiente) as perdas projetadas para os anos 2023-2026. Então que “proposta” é essa? Não há documento formal que garanta nada. Se a Reitoria “mantém” a proposta já existente, então ela pode apenas contabilizar as saídas por exoneração como parte do número de 879 contratações já planejadas e esse tópico estará atendido.
Note, ainda, o uso da palavra “exonerados”. No jargão da administração pública, a exoneração é um tipo específico de saída que ocorre quando a pessoa pede para se desligar (no popular, “se demite”), ou perde um cargo de comissão (cargo não-concursado, que não é o caso da docência), ou não assume o cargo dentro do prazo (ver Lei Estadual nº 10.261/1968, art. 86, e Lei Federal nº 8.112/1990, arts. 33 e 34). Ou seja, vê-se desde logo que as exonerações formam apenas uma parte das possibilidades de haver falta de pessoal, existindo outras hipóteses tão ou mais comuns: aposentadoria, morte, licenças e afastamentos, demissão. E essas outras formas de perda, como ficam? Não está claro. No trecho imediatamente seguinte, diz a Reitoria: “As demais vagas de 2023 até 2025 serão decididas segundo o Conselho Universitário ano a ano, seguindo a proposição orçamentária.” A esta altura não preciso mais dizer que já existe uma proposição orçamentária inicial para 2023-2026, e que ela já inclui as 879 contratações prometidas. Para mudar aquela proposição, a Reitoria lava as mãos e deixa isso a cargo do Conselho Universitário, sequer se comprometendo a apresentar ao Conselho proposta diferente da que já existe. Voltaremos a esse tema porque existem especificidades orçamentárias que proíbem a liberação dessas vagas adicionais. Por ora, vale concluir que esse ponto da carta nada mais é que uma repetição da mesma proposta de 879 contratações, não representando nenhuma conquista ou compromisso adicional. E as propostas de contratação de docentes da Reitoria param por aí.
Em conclusão: a Reitoria não comprovou que será capaz de entregar um número de docentes no patamar de 2014, mesmo contabilizando a única promessa da greve (148 vagas adicionais, sem garantia formal). Pelo contrário, tudo indica que será entregue um grande déficit em relação a 2014.
- Na descida da ladeira: uma perspectiva de longo prazo
Segundo a Reitoria e as diretorias de unidades, o ano de 2014 seria referência porque teve o maior número de docentes em termos absolutos. No tópico anterior, adotei essa referência sem questionar, e demonstrei que ela não será alcançada. Ocorre que essa escolha de referencial é política e esperta, mas inadequada. Primeiro, ela induz o público – inclusive o outro lado da negociação – a concordar com um método tendencioso de aferição do déficit de docentes (a diferença absoluta em relação ao ponto de máximo). Segundo, esconde o real motivo da escolha do ano de 2014 como recurso útil de discurso. Abordo o primeiro ponto nesse tópico e o segundo no tópico posterior.
Para entender a questão, é preciso adotar uma perspectiva de longo prazo sobre os rumos da demografia uspiana. O gráfico abaixo mostra a evolução do número de vagas e cursos de graduação ofertados pela USP nas últimas três décadas.

É curioso como vários aspectos da história recente da conjuntura política brasileira estão refletidos nesse gráfico. Nos anos 1990, vemos os traços daquela antiga universidade pública que formou – e ainda é o ideal de – boa parte do corpo docente: uma instituição seleta, de poucas vagas e elevada qualidade, mas também elitista e excludente. A década seguinte, dos anos 2000, foi pautada por outro espírito, quando o discurso político se focou no potencial da educação, na necessidade de formar mais pessoas no país e de tornar a universidade mais inclusiva. Foi aí que nasceram as primeiras iniciativas de cotas no ingresso da graduação – em outras universidades, com atraso de mais de uma década da USP – e quando muitas famílias brasileiras tiveram seu primeiro membro entrando no ensino superior. A expansão das instituições públicas e também privadas foi direcionada e incentivada pelos governos federal e estaduais. Vivemos hoje a ressaca daquele movimento. A expansão cessou em meados da década de 2010, e desde então o que temos é um cenário de gradual estabilização no número de vagas e cursos.
Como era de se esperar, o número de estudantes cresceu e muito nessas três décadas. Efetivamente, como mostra o próximo gráfico, de 1990 a 2022 o número de estudantes da USP mais que dobrou! De cerca de 47 mil estudantes, saltamos para mais de 97 mil.

Ora, seria de se esperar que a demografia docente também acompanhasse essa expansão, claro que dadas as devidas proporções e necessidades de cada curso. No gráfico acima também consta a evolução do número de docentes da USP. E, de novo, a série não deixa de fazer suas próprias revelações sobre a história da conjuntura política nacional e local.
Primeiramente, notamos que o número de docentes de 2022 não é maior que o de 1990, nem sequer igual, mas menor! Isso mesmo: em 2022 a USP tinha o dobro de estudantes que em 1990, mas quase 9% menos professores. Por isso é importante olharmos para a comparação entre as duas populações – estudantes vs. docentes. A linha inferior do gráfico mostra justamente esse indicador: quando em 1990 tínhamos 8,3 estudantes por docente, em 2022 esse número era 128% maior, batendo em quase 19 estudantes por docente.[1]
Podemos notar também que já na década de 1990 houve um declínio no número de professores, o que é um sintoma das políticas neoliberais que passaram a ser implementadas em nível estadual e nacional no sentido de promover um gradual sucateamento e privatização dos serviços públicos. Aquela antiga universidade de excelência já começava a dar sinais de ceder aos tempos de neoliberalismo.
O gráfico mostra ainda que, durante a época expansionista que se seguiu, foi inevitável promover uma contratação paulatina de professores, até um pico em 2014. Mas não se enganem pelo gráfico: para melhor visualização, ele traz escalas diferentes em cada linha. Fato é que, mesmo durante esse período, houve uma sucessiva deterioração da razão de estudantes por docente, pois não se contratavam docentes em nível suficiente para sustentar a expansão massiva. De uma razão de cerca de 14 estudantes por docente em 1999 chegamos a 15,6 em 2021 (aumento de 11%). Quem viveu aquele momento vai lembrar que uma das bandeiras do movimento estudantil da época era justamente a de “expansão com qualidade”, pois os governos imprimiam um aumento enorme de vagas – correto e necessário –, mas não estava garantida a contrapartida de investimento requerida para manter a qualidade da instituição.
Eis, então, 2014. Depois de analisar os dados históricos, fica fácil constatar que aquele ano não foi nenhum ponto de alto na história da USP. Se tivemos um ponto de alto, então esse foi 1990, antes de toda a prática neoliberal privatista. Ou, forçando a barra, o fim dos anos 1990, antes da enorme expansão do número de estudantes sem contrapartida suficiente de investimento. 2014 foi apenas uma última parada, numa longa e vertiginosa descida, antes do abismo atual. Temos motivo para afirmar que a situação em 2014 já era ruim, que já vinha de uma deterioração de décadas, e que um retorno momentâneo àquele patamar é apenas um paliativo, não devendo figurar como horizonte de conquista política substancial para o movimento estudantil da USP.
Para termos noção do que realmente precisaria ser estudado enquanto demanda política: para que em 2022 tivéssemos a mesma razão estudante-docente do ano de 2014, seria necessário que em 2022 a USP tivesse 1.098 docentes a mais. Para voltar à razão de 2000, isto é, no início da expansão dos anos 2000-2010, precisaríamos já ter 1.597 docentes a mais em 2022. E, para voltar à saudosa universidade de excelência dos reacionários de plantão, com referência no ano de 1990, precisaríamos ter tido em 2022 – pasmem – 6.453 docentes a mais! Se somarmos a isso a estimativa de saídas definitivas projetadas no período 2023 a 2026, seguindo a metodologia do tópico anterior, pressupondo que o número de estudantes não irá crescer, teríamos a necessidade de contratar, até o fim da atual gestão: 2.276 docentes para voltar à razão estudante-docente de 2014; 2.775 docentes para voltar à razão de 2000; e 7.631 docentes para voltar à razão de 1990!
Não tenhamos medo de reivindicar números grandes, pois o déficit é, sim, enorme.
- Neoliberalismo orçamentário: as amarras políticas e burocráticas
O gráfico anterior mostra como a situação descarrilhou desde 2014. Mesmo havendo um resquício de aumento de estudantes nos anos que se seguiram, legado da expansão, o número de professores caiu drasticamente, de um pico de 6.090 em 2014 para 5.151 em 2022 (queda de 15%), fazendo explodir a razão estudante-docente. Como explicar um movimento tão brusco?
Bem, sabemos o que aconteceu em nível federal a partir de então: recrudescimento do neoliberalismo e eventual golpe de Estado em 2016, com a aprovação de um teto de gastos federal que enterrou qualquer possibilidade de manter a expansão e abertura da universidade pública como se tinha visto nos 15 anos anteriores. No nível estadual essa dinâmica também ocorreu, mas com contornos próprios, e para investigar essa questão temos de entender o cenário orçamentário da USP.
O principal componente do orçamento da USP são os aportes oriundos diretamente do tesouro do estado de SP. Durante a ditadura, os aportes variavam e eram objeto de constante disputa política, sendo o orçamento usado como forma de controle da universidade. Com a redemocratização, e enfrentando um cenário de hiperinflação e greves constantes, consolidou-se a ideia de garantir às universidades estaduais um percentual fixo da arrecadação com o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS). Assim, a universidade teria uma proteção de autonomia, recebendo sempre o mesmo percentual da arrecadação não importando qual governo ou taxa de inflação do momento. Essa vinculação fixa ao ICMS é tida como o “modelo paulista de excelência”, de “autonomia orçamentária”, pois não é regra nas demais universidades.
O modelo foi estabelecido inicialmente por um decreto do governador em 1989, leia-se: a famosa canetada, que o governador pode decidir por conta própria a qualquer momento sem passar pelo legislativo (Decreto nº 29.598/1989). O patamar inicialmente escolhido foi de 8,4% do ICMS a ser repartido entre as três universidades estaduais (Unesp, Unicamp e USP), mas foi aumentado para 9% no início dos anos 1990 e 9,57% em 1995. E… nunca mais. Sim, você leu certo: a universidade dobrou de tamanho desde aquela época, mas não recebeu maior alocação de orçamento. Vale esclarecer que tais percentuais já eram controversos e criticados na época em que foram estabelecidos, pois não levaram em conta gastos e projeções já conhecidas.
Aquele decreto inicial foi feito em um período jurídico nebuloso, quando São Paulo ainda aguardava a nova constituição estadual do pós-ditadura e não se sabia como seriam repartidas as competências orçamentárias no estado. Depois da nova constituição paulista, espelhando a nacional, e sobretudo depois da guinada neoliberal que instituiu amarras ao orçamento sob o manto da “sustentabilidade” e “responsabilidade fiscal” (Lei de Responsabilidade Fiscal), é difícil dizer que o governador pode dispor livremente sobre o orçamento em um simples decreto. Pelo paradigma atual, é necessário que o legislativo (no caso, a Alesp) aprove as propostas encaminhadas pelo governador de leis orçamentárias anuais e plurianuais, primeiro destinando orçamento para que depois o governador possa executar. Assim, embora o antigo decreto seja usado até mesmo em documentos oficiais da USP, é improvável que ele seja válido para garantir por si só a “autonomia orçamentária”. O que efetivamente garante o financiamento é uma estrutura de conjuntura política: o fato de que o mesmo patamar de 9,57% é renovado todos os anos na Lei de Diretrizes Orçamentárias anual, proposta pelo governador e aprovada pela Alesp.
Isso tudo é de grande importância para pensar a viabilização das causas da nossa greve, porque implica que temos de nos mobilizar em nível estadual para alcançar mais orçamento para a universidade. Já houve tentativas junto à Alesp de aumentar o patamar para 10%, 10,5% ou até 11% do ICMS – inclusive greves de docentes –, mas isso não foi conquistado (já chegou a ser aprovado pela Alesp, mas vetado pelo governador). Além disso, sem uma norma mais forte, é de se ponderar se o governo ou a Alesp poderiam retroceder de um ano para outro, visto que o orçamento é redefinido periodicamente. A única garantia real de “autonomia orçamentária” seria alterar a constituição do estado de SP, que tem precedência hierárquica sobre as leis orçamentárias, algo que exige maioria qualificada de 3/5 da Alesp em dois turnos de votação. Isso já foi discutido, e é um modelo factível que já existe para a Fapesp. Outras possibilidades imediatas de aumento de orçamento envolvem várias sutilezas do ICMS, incluindo normas e interpretações feitas pelo governo que acarretam perdas relevantes de repasse para a USP (descontos no ICMS, limitação à quota-parte estadual, entre outras). A Adusp possui algumas sistematizações introdutórias para quem quiser entender esses pontos.
Se tudo isso parecer de outro mundo para reles estudantes como nós, aqui vai mais um elemento: em dez anos, o ICMS não existirá mais – fruto da reforma tributária do governo Lula. Como ficará a autonomia universitária então? Os reitores das universidades estaduais já estão conversando a portas fechadas com o governador e a Alesp para pensar em como isso será resolvido. E o governador já se comprometeu a não diminuir, mas também não aumentar o financiamento. Ora, um reitor digno desse cargo deveria aproveitar a oportunidade da greve e crescer para cima do governo estadual. Você ainda acha que nós estudantes não devemos ter voz nessas questões? Pelo contrário, tal como fazem reitores, Adusp e Sintusp, devemos nos mobilizar em massa e no nível estadual, pelo bem da universidade e da nossa categoria.
Porém, por que tipo de modelo devemos lutar na era pós-ICMS? Será que a simples troca por outra base de arrecadação é suficiente? Há alguns anos, a Fapesp fez uma análise interessante do tema e revelou um problema estrutural do modelo atual: o ICMS depende fortemente da atividade econômica do estado. Já descontando a inflação, a Fapesp produziu o seguinte gráfico mostrando a evolução na arrecadação do imposto em SP de 1995 a 2018:

Podemos notar que a arrecadação começou a patinar em termos reais a partir de 2011, e afundou no período 2014-2016, estagnando novamente nos anos seguintes. A contrapartida disso foi que a USP ficou deficitária, assim como as demais estaduais. Seria interessante, então, incluir no modelo de financiamento universitário um patamar mínimo de repasses para as universidades, pelo menos para não permitir perdas reais de um ano para o outro.
Deixando de lado a discussão do modelo de financiamento e voltando para o que aconteceu depois de 2014, fato é que a reação àquele período de crise de arrecadação foi drástica. Não bastassem todas essas restrições de fora para dentro, a USP por sua vez resolveu impor restrições de dentro para dentro. E, como o neoliberalismo orçamentário incute a contradição capital-trabalho no seio do Estado, foi colocada uma lupa sobre o bode expiatório da vez: os gastos com folha de pagamentos (isto é, salários e outras despesas com pessoal). Nesse compasso, a Fapesp também calculou o percentual desses gastos frente aos aportes do ICMS:

Note como o gasto com folha extrapolou toda a arrecadação com ICMS das três universidades estaduais. Note, ainda, que isso se reverte na USP depois de 2014 mesmo com uma queda real na arrecadação a partir daquele ano. A “recuperação” orçamentária se acentua bruscamente de 2017 em diante. Como então pôde a USP reverter seus gastos com folha de pagamentos mesmo enfrentando queda real de arrecadação?
Nós estudantes precisamos entender que a USP, à semelhança de muitas outras universidades brasileiras, funciona basicamente como uma democracia liberal de professores. Assim como o legislativo aprova as leis e o governo executa, o Conselho Universitário (Co) aprova o estatuto, o regimento e as resoluções internas da USP, e a Reitoria executa. Assim como tanto o governo federal quanto os estaduais têm legislativos e executivos próprios, tanto a USP geral quanto suas respectivas unidades também têm. E assim como um dos recursos do neoliberalismo orçamentário é cristalizar normas orçamentárias em documentos da alçada exclusiva do legislativo reacionário, também na USP isso aconteceu.
O Co é composto em sua enorme maioria por docentes, com uma minoria de representantes discentes, funcionáries, e partes externas (inclusive representantes de associações da burguesia: Fiesp, Fecomercio, e Faesp, uma bizarrice da USP). As normas do Co são hierarquicamente superiores às da Reitoria ou das unidades. A Reitoria, mesmo com amplos poderes, não pode descumprir ou alterar o estatuto da USP, por exemplo. Isso cabe ao Co. Claro que a escolha do nome do reitor expressa uma situação de bloco político consolidado dentro do Co, e por isso o reitor costuma ter uma base importante para ter suas propostas aprovadas no Co, e a Reitoria tem suas próprias competências na divisão de poderes estabelecida pelo estatuto.
Pois bem, em reação à crise de arrecadação do ICMS a partir de 2014, o corpo docente da USP decidiu realizar uma ampla reforma no orçamento da universidade. Em 2015, o Co emendou o estatuto da USP para prever que fosse elaborada uma proposta de “parâmetros de sustentabilidade econômico-financeira”, que deveria incluir: limite de gastos com pessoal, regras e indicadores de contratação, limites para todo tipo de compromisso ou investimento que onere o orçamento futuro da USP, proibição de contratação de pessoal em ano de eleição para a Reitoria, e a criação de uma Controladoria-Geral para monitorar o cumprimento dessas regras (Resolução USP nº 7.105/2015).
Em 2017, a proposta finalmente ficou pronta e foi aprovada em sessão polêmica do Co (Resolução USP nº 7.344/2017), apelidada de “teto de gastos” em alusão a uma política mais ou menos análoga do governo Temer. Em resumo, ela estipulou o seguinte: uma meta de limite máximo com gastos de pessoal no patamar de 85% das receitas do ICMS; em caso de haver déficit orçamentário e o gasto com pessoal estar acima de 80%, a proibição de criar cargos, aumentar salários, alterar carreiras, novas contratações (exceto reposições), entre outros aumentos de despesa com pessoal; uma proporção mínima de 40% de docentes em relação a funcionáries (o que na década passada ficou entre 25% e 30%), sob pena de não poder contratar mais funcionáries exceto para repor as perdas do ano anterior; exceções e incentivos a um programa de demissão voluntária; a criação de uma “reserva de contingência” no montante mínimo de 3 meses da média da folha de pagamentos do ano anterior; entre outras regras, incluindo fiscalização e planejamento.
Com essas medidas, fica fácil entender como a USP (leia-se: docentes do Co) reverteu a já mencionada situação de crise de arrecadação. Basicamente, recorreu-se a um clássico do neoliberalismo orçamentário: em vez de disputar politicamente o orçamento no sentido de proteger e melhorar o serviço público, criou-se um programa de austeridade auto-imposta. As contratações foram estancadas (sobretudo de funcionáries), o fluxo natural de saídas por morte, aposentadoria, exonerações etc. que vimos no tópico anterior seguiu seu caminho sem as devidas reposições, e as demissões foram incentivadas. É por isso que vimos o número de docentes cair tanto nos últimos anos, e caiu mais ainda o de servidores.
Hoje, passados alguns anos da implementação do teto de gastos, podemos dizer que ele foi um grande exagero. A USP ficou enormemente superavitária e atualmente tem reservas no volume de R$ 5,7 bilhões, dos quais parte relevante (2 bi) é a reserva de contingência criada pela norma do teto. Vale frisar que esta última já passou do volume inicialmente necessário de três folhas mensais (que seriam aprox. 1,5 bi) e caminha para se tornar um fundo de endowment tal como o de algumas universidades privadas estadunidenses, que criam fundos de investimento enormes e se financiam com parte dos rendimentos privados de mega-empresas e outros empreendimentos de capital. Vale mencionar também que uma forma de escapar dessas restrições é justamente contratando os serviços por fora, via terceirizações ou privatizações, visto que estas parecem não entrar no cômputo da folha de pagamentos. Trata-se, portanto, de uma norma que acirra as tensões entre categorias universitárias, pois coloca docentes em competição orçamentária direta contra funcionáries celetistas, estimula a privatização, precarização e escassez de orçamento, e incentiva auferir ganhos financeiros de capital sobre a exploração da classe trabalhadora. Em suma, em vez de enfrentar o problema político de décadas que é o orçamento estadual da universidade, o corpo docente decidiu fazer o que o governador gosta: cortar na carne, maquiando um velho problema de orçamento com um novo problema de sucateamento.
Aqui, já estamos no ponto de entender outro “detalhe” que passou desapercebido nas negociações. Desde a crise de 2014, quando os gastos com folha passaram de 100% do ICMS, a USP finalmente caminha para ficar bem abaixo do patamar de 80% estipulado no teto de gastos. É por isso que sobrou espaço para contratar algumas pessoas a mais. E, adivinha, que coincidência: o número de docentes que dá para contratar e ainda permanecer debaixo do teto é justamente o número que repõe 2014 face a 2021! Essa é a coincidência perfeita, pois embasa todo aquele discursinho da Reitoria & asseclas de que tudo foi planejado para “voltar ao ponto em que a USP teve mais docentes em sua história”. Porém este não foi o motivo original daquela escolha. 2014 foi escolhido porque se submete aos limites de uma política de gestão das finanças universitárias baseada em rentismo e austeridade. A feliz coincidência fez a Reitoria adotar, retroativamente, o discurso de que 2014 teria sido uma época de ouro na USP, a referência técnica para chegar ao número de 879 contratações e o horizonte político a ser alcançado na greve. Basta ler o já mencionado Planejamento Plurianual redigido dois anos atrás e está tudo lá, com as proporções e tudo.
- Um balanço sobre a assimetria informacional
Seria possível seguir realizando várias análises: estimar o impacto financeiro de novas vagas e demonstrar que há orçamento, incluir pautas igualmente importantes (permanência, servidores), mensurar o impacto da falta de um gatilho automático de reposição de saídas, discutir insuficiências localizadas em certas unidades (e edital de mérito), docentes adicionais se quisermos reduzir a evasão na USP, etc. Poderíamos também pensar nos caminhos para superar a situação atual: volta do gatilho, fim do edital de mérito, remanejamento do teto de gastos, remodelagem do financiamento estadual, uma Reitoria que lute pela universidade… Mas o espaço é curto, então faço apenas um desabafo final de quem enfrentou as dificuldades de trabalhar com dados da USP.
Uma das maiores críticas à greve foi que nós começamos o movimento sem muito planejamento e com uma total falta de informações básicas para guiar a estratégia e reivindicações. De fato, ao deflagrarmos a greve, muites acreditavam corretamente na verdade e na justiça das causas, mas também tiveram a sensação de entrar em uma batalha sob neblina cerrada. Por isso mesmo vários cursos fundaram grupos de análise e estudos (GTs). Mas, apesar do serviço valioso prestado por esses GTs, que inclusive embasou esse texto, descobrir as coisas no meio do caminho tomou muito tempo e esforço, dispersando nossas forças e introduzindo vulnerabilidades.
Sinto que é consenso entre nós um balanço auto-crítico a esse respeito. Fato é que poderíamos ter deflagrado greve com mais informação e alinhamento. Era plenamente factível ter todo o conteúdo desse texto disponível antes da greve, bem como vários outros achados dos GTs e comandos, o que poderia ter rendido maiores conquistas nas negociações. Pude presenciar como todos os detalhes que expus aqui tiveram o potencial de dividir opiniões. Disputas e equívocos sobre as várias possibilidades metodológicas; não ter, unívoca entre nós, pelo menos uma ordem de magnitude de contrações; não entender normas e orçamento. É evidente que isso representou uma oportunidade para opositoras nos desmoralizarem e explorarem nossas fraquezas.
Tampouco posso deixar de registrar a baixeza com que isso foi capitalizado pelo outro lado. Aludiram à nossa “infantilidade” e “falta de seriedade”, foram à mídia para nos chamar de “emocionados” e “sem educação”. No entanto sempre escolheram ignorar que nós não temos o mesmo acesso a informação – com efeito, não temos o mesmo acesso aos meios políticos e materiais de produzir informação e organização. Nosses representantes adentraram as salas de negociações e foram contrapostes com dados internos que nunca encontramos em bases públicas, bem como armadilhas burocráticas que o outro lado domina e que para nós são pouco conhecidas. Os parcos dados que temos foram garimpados de fontes oficiais (i.e., sob controle docente), que têm inúmeros pontos de falha: não são amigáveis à extração, análise de dados e padrões contemporâneos de dados abertos; contêm uma vasta lista de erros e inconsistências; são quase sempre ambíguas e mal documentadas; e não representam nem uma fração dos dados detidos por docentes e funcionáries em bases fechadas, que deveriam ser publicizadas nos limites da legislação.
Diante disso, relembro todas as estruturas que eles já têm dadas e nós, não. Autoridade. Tradição. Burocracia. Legislação. Cargo. Direitos Trabalhistas. Influência política. Contatos na mídia. Prestígio. Dinheiro. Orçamento. Instituições Permanentes. Sindicato. Memória institucional. Anos de processos administrativos formalizados. Enormes bases de dados internas não-publicizadas. Prédios, praças, auditórios, laboratórios, livros, estátuas e quadros com o nome e a memória de heróis da sua categoria. Liberdade irrestrita-e-não-raro-abusada de cátedra. Todo o poder decisório estrutural da universidade e boa parte das posições administrativas mais importantes. Poder sobre os mecanismos de controle e transparência, inclusive instâncias administrativas de investigação e punição. PM no campus. Em muitos casos, uma postura de condescendência, superioridade e austeridade antipedagógica. Na maioria, uma mesma cor e origem de classe.
Seriedade e educação com privilégio e poder é refresco. A greve explicitou vários sintomas do aspecto conflitivo na relação entre categorias da universidade. A Reitoria chegou a oferecer propostas de negociação que implicavam o simples aumento da carga horária de funcionáries já precarizades, sem nenhuma contrapartida de investimento, tentando colocar as categorias de estudantes e funcionáries em conflito entre si. O próprio problema de orçamento que deu causa à greve foi “resolvido” com a categoria de docentes parasitando as demais categorias e a sociedade, via financeirização, privatização, precarização do trabalho e sucateamento da universidade.
Olhando pelo lado positivo, a demografia universitária está mudando, e com isso também suas contradições de classe. A expansão e as cotas vieram para ficar, e cada vez mais estudantes da nossa geração virarão docentes ou funcionáries no futuro. Temos tudo para seguir mudando esse fechamento da USP, que ainda é dominada por uma categoria reacionária e segue numa espiral de privatização e sucateamento. Infelizmente, a pandemia desarticulou a nossa categoria. Mas esta greve nos reconectou. Para evitar repetir o mesmo erro, devemos consolidar os acúmulos e manter a articulação no pós-greve, e os vários GTs devem ser transformados em braços permanentes do movimento estudantil. Se as outras categorias da universidade têm suas burocracias e organizações, e as acionam plenamente na hora da disputa, precisamos ter as nossas também.
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Como eu disse no começo do texto, não existe método perfeito de estimar o déficit de docentes. A razão estudante-docente também tem limitações, pois não existe uma razão de ouro, “científica”, e esse número depende muito dos cursos ofertados e da abordagem de ensino. Por exemplo, existem universidades ditas “de excelência” que ministram cursos iniciais tipo Cálculo e Introduções de maneira altamente padronizada, com 300, 400 ou até mais estudantes, em uma turma atendida por um único docente auxiliado por uma bateria de bolsistas. Outras universidades de mesmo “ranking” preferem abordagens mais lapidadas, com razões de estudante-docente abaixo de 7 ou até mesmo 5 ou 3. Justamente por isso, a comparação da USP com si própria, no seu passado, é mais reveladora, pois demonstra a deterioração do projeto da instituição. ↑