Manifesto de Criação do Coletivo Feminista Amélia Império
Os cursos de exatas de modo geral, em especial a Física, foram construídos historicamente como espaços amplamente masculinos, os quais mulheres não podiam ocupar ou ocupavam coadjuvantemente sujeitas à invisibilidade (TOSI, 1998). Isso reflete-se claramente nas estatísticas da USP de 2021 (DISTRIBUIÇÃO…, 2021), as quais revelam que, no corpo estudantil da graduação de todos os cursos do Instituto de Física (IFUSP), temos apenas 21,6% de alunas mulheres – expressando em números absolutos, 297 alunas.
A partir desse contexto, mostrou-se necessária a criação de um coletivo que evidenciasse as questões de vivência e inclusão dessas alunas no instituto: tanto a discussão de casos de assédio (que sempre foram muito frequentes em nossa unidade), quanto legitimar um espaço de acolhimento.
Por muitos anos, manteve-se o Coletivo de Mulheres Sonja Ashauer (COLETIVO…). Este teve uma importante participação nas atividades e na vida coletiva estudantil do instituto e trouxe diversas contribuições para as mulheres que convivem nesse espaço. Entretanto, com o tempo, diversas contradições surgiram durante a formação e a organização desse coletivo, fragmentando ainda mais uma vivência que já era complexa no espaço do Instituto de Física. Na nossa perspectiva, entendemos que isso aconteceu por duas grandes razões: as mulheres que construíram o coletivo graduaram-se e/ou afastaram-se da vivência acadêmica do IFUSP por quaisquer motivos, de forma que cada vez menos pessoas participavam ativamente dele e as manifestações transfóbicas por grande parte do coletivo no que tange a utilização dos banheiros por pessoas trans.
Dado esse contexto de desmobilização das mulheres no Instituto de Física, nos organizamos para repensar as ações que deveríamos tomar e como poderíamos construir essas experiências. Para isso, entendemos que a criação de um novo coletivo fazia-se necessária por basear-se em outros preceitos e também por tratar-se de um novo momento da história do instituto.
Nós do Coletivo Feminista Amélia Império queremos construir um ambiente, em sua essência, de acolhimento para TODAS as mulheres que convivem no IFUSP. Objetivando espaços de compartilhamento e conversa, como também agindo diretamente no dia-a-dia da instituição para prevenir casos de agressão à mulher, física, sexual ou psicológica, além de intervir de forma incisiva em casos que tenham acontecido para que sempre a vítima seja ouvida e suas vontades colocadas em pauta.
Para tanto, acreditamos que a construção de um feminismo tenha que contemplar todas as experiências do ser-mulher e entender as questões que essa vivência nos coloca. Julgamos que é impossível generalizar essas experiências numa única forma de vivência, principalmente quando pautada na experiência de uma mulher cis hétero branca sem deficiência e de classe alta. Ao mesmo tempo, acreditamos num feminismo pautado na luta anti-racista e anti-opressora, na medida que o racismo foi e é utilizado como ferramenta dos homens brancos para a manutenção de seu poder.
Para Djamila Ribeiro – mestre em filosofia política pela UNIFESP, feminista negra, escritora e acadêmica brasileira – somente desconstruindo o mito de país harmônico livre de racismo é que será possível criar políticas eficazes para enfrentar a violência de gênero (PORTAL GELEDÉS, 2016). Desta forma, o feminismo que queremos reproduzir aqui é pautado nesta ideia, pois não há luta contra qualquer opressão que não seja perpassada pelo racismo, uma vez que este estrutura a sociedade em que vivemos. Djamila Ribeiro, em seu livro “lugar de Fala” (2020), diz que pensar em feminismo também é pensar em negritude, justamente para romper com a cisão criada numa sociedade desigual, além de, ser possível pensar projetos e novos marcos civilizatórios, para que um novo modelo de sociedade seja refletido. Portanto, “é também divulgar a produção intelectual de mulheres negras, colocandos-as na condição de sujeitos e seres ativos que, historicamente, vêm fazendo resistência e reexistências.” (DJAMILA RIBEIRO, Lugar de Fala, 2020, p. 14).
Precisamos pautar as discussões do ser-mulher na experiência real que nos acomete: somos mulheres que diferem entre si e que vivem atravessamentos de diversas origens. O que nos une é a experiência do viver-mulher em uma sociedade machista, racista e patriarcal. É isso o que devemos discutir, entendendo e reconhecendo as diferenças entre nós que enriquecem a nossa vida e a nossa formação.
Nesses ideais que se baseia o Coletivo Feminista Amélia Império, num feminismo para todas as mulheres e que reconhece e valoriza as diferenças entre nós. Não operamos e nem devemos operar de forma isolada dos outros movimentos de resistência e minorias, porque entendemos que essas lutas também são nossas lutas e que, sem elas, não destruiremos a opressão de gênero.
Nos fazemos vivas pela ação prática que articula nossas formações e vivências, nos fazendo presentes nas vidas de todas as mulheres do Instituto de Física da Universidade de São Paulo.
Referências bibliográficas
COLETIVO de Mulheres Sonja Ashauer – Física. São Paulo. Disponível em: https://www.facebook.com/coletivosonjaashauer. Acesso em: 27 jan. 2023.
DISTRIBUIÇÃO da população da USP por gênero e por Unidade, em 2021. In: Anuário Estatístico da USP: Informações Demográficas. São Paulo. Disponível em: https://uspdigital.usp.br/anuario/AnuarioControle#. Acesso em: 27 jan. 2023.
TOSI, Lucía. Mulher e ciência: a revolução científica, a caça às bruxas e a ciência moderna. Cadernos Pagu, n. 10, p. 369-397, ago. 1998.
RIBEIRO, Djamila. Djamila Ribeiro: “É preciso discutir por que a mulher negra é a maior vítima de estupro no Brasil”. Portal Geledés, 2016. Disponível em: https://www.geledes.org.br/djamila-ribeiro-e-preciso-discutir-por-que-mulher-negra-e-maior-vitima-de-estupro-no-brasil/?gclid=CjwKCAiAxvGfBhB-EiwAMPakqiLZYlikO1zi48BGdB5okcruva0ZfXsW9ya1YgZq2e6hP8eDkmnBeRoCTQwQAvD_BwE.
RIBEIRO, Djamila. Lugar de Fala/Djamila Ribeiro. – São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jadaíra, 2020.