Fazendo o caminho de casa enquanto o sol se erguia e o cegava por instantes com feixes incontroláveis vindos da janela do trem. Todos no vagão iam a algum lugar enquanto nosso personagem voltava. Todos iniciavam agora o dia enquanto para ele ainda era ontem.
Sendo o único viajante do passado presente, o sentimento que lhe restava era curiosidade sobre como as coisas se apresentavam no futuro. Como se portavam as pessoas que tiveram um ontem antes do dele e que agora viviam o amanhã como hoje? Saberiam elas de algo novo? Poderiam salvá-lo do destino incerto que lhe aguardava ao dormir e acordar já dentro de uma realidade diferente?
O peso de tantos questionamentos o fez apoiar a cabeça na barra à sua esquerda. De repente o chiado do trem arranhando os trilhos doeu-lhe os tímpanos e seu estômago se embrulhou com terror, como se estivesse ele mesmo ali, sendo despedaçado por aquelas rodas furiosas.
Ainda atemorizado pela terrível morte, começou a ouvir subitamente um flautista que passava pelo vagão. O soar da flauta parecia alcançá-lo mesmo de onde estava, um dia atrasado. As notas tocavam-lhe o rosto graciosamente e expulsavam lágrimas ressentidas, descontentes por se fazerem cair à luz de um mundo que não mais sofria pelo mesmo. Estava então sozinho, perdido na agonia banal já superada.
Porém, se todos ali sobreviveram a dor de ontem, se bem em sua frente podia ver sinais de que a vida continuava, não seria esta uma garantia de que ele também conseguiria? Sua vida estava certa, pelo menos até amanhã.
Andando pelas ruas, que a princípio lhe pareciam as mesmas, uma ansiedade agonizante parecia lhe corroer. Uma ânsia o fazia procurar violentamente por algo que teria mudado, por alguma coisa diferente que lhe provaria que o dia não era mais o mesmo e que a vida prosseguiu enquanto estava fora. Afinal deveria ter ela continuado, ou seus erros logo acordariam e tudo ainda permaneceria o mesmo. Porém a realidade parecia desafiá-lo, nada lhe daria a confiança de uma certeza, tudo estava como da última vez que às viu: A senhora com cabelos encaracolados que sentava em frente à sua casa aos domingos e o olhava com interesse, o badalar do presépio que anunciava a missa que se iniciava às 7 e as mulheres com véus brancos e saias longas, a estreita viela por qual passava e o pequeno gato que sempre acompanhava a fachada de um bar próximo.
Já frustrado pela monotonia e invariância da realidade, seu olhar baixou em submissão, pronto a aceitar o que agora parecia imposto. De repente algo o fez erguer a cabeça, e no córrego próximo que sempre cruzava, já muito deteriorado por dejetos e com um fraco curso de água que tentava prosseguir em meio a imundícies, se estendia a figura esguia de uma garça branca.
Ela também pareceu notá-lo imediatamente, permanecendo estática com uma promessa de ameaça, mesmo com a considerável distância que os separava. Naquele ambiente escurecido pela sujeira seu corpo claro lhe denunciava e a fazia destoar completamente, como um elemento que também não pertencia. Como ele, de um tempo não tão distante, mas que o separava, que o impedia de alcançar completamente o que agora chamavam de vida.
Existe um tipo de miséria incomunicável. Não há como expressá-la ou tentar descrevê-la sem ser pego na intransponibilidade da língua. A única forma de reconhecê-la ou compartilhá-la é por similaridade, pelo encontro de outra criatura que morre pela mesma bala.
Apresentava-se ali então um encontro singular, um fio inefável os ligava e assim confirmava o que ele já temia: O mundo estava completo e ele estava de fora!
Enquanto todos dormiam e ele vagava haviam de alguma forma o posto para fora do laço que envolvia o reconhecível e humano. Agora restaria apenas ele e esta garça que lhe condenava pela simples existência? Podiam vê-lo e ouvi-lo, mas sempre com apatia, sempre como um sub humano que não compartilha do essencial a uma comunidade: sincronia.
Enfim, virou às costas e seguiu para casa, com o peso de um coração que tiquetaqueava em um ritmo distinto, atrasado, fora de passo.
Sobre a autora: Maria Dressano é aluna do bacharelado e declara ódio ao livro didático ‘Física Quântica’ de Eisberg e Resnick.