A suculenta gigante ou o tamanho da suculenta

Ela estava fazendo o espaço ao seu redor parecer pequeno. Começou a ter a impressão que faziam-se anos desde a última vez que foi possível chegar em sua casa, sentar em seu sofá e assistir a seu filme quase-favorito. Sentia que fazia uma década desde que tinha, alguma vez, conseguido afundar-se em algum tipo de trabalho, ou ao menos tentado; e talvez fizesse mesmo. Mas, agora, tinha uma suculenta gigante em seu apartamento.

Sua rotina teve que mudar, mas mudou tão bem mudada que ela não teve controle sobre a mudança. Ela percebeu que começou a usar seus fins de tarde, seus sábados e seus domingos para dormir e dormir e dormir. Notou que, durante a noite, quando queria ir ao banheiro por insônia, não conseguia sair de seu quarto pois os corredores estavam tomados pelos braços da suculenta; e, então, em algum dia, teve a ideia de começar a usar uma toalha de lençol. Mas, se pensasse um pouco sobre, se assustava com o quanto aquelas últimas semanas pareciam ser sua vida inteira.

Talvez fosse porque sentia muito conforto no tamanho de Dona. Via na gigantesca suculenta uma dor que somente elas compartilhavam. Kátia tinha acordado um dia, ainda quando garota, e descobrira que o corpo que vestia era grande demais para ela; talvez tivesse sido assim com Dona. Todas as noites, desde quando se tornara garota-mulher, Kátia chegava em seu apartamento e tentava dobrar seus braços; dobrar e dobrar e dobrar e dobrar e amarrá-los em seus ombros para que eles parassem de esbarrar por suas paredes. Quando tentava andar de seu quarto até o banheiro, via suas enormes pernas arrastando pelo chão e teve que aprender todos os cuidados necessários para não tropeçar nelas. Sua cabeça não avisou ao seu pescoço que ia crescer tanto e pesar tanto, e agora, depois de um dia cansado, seu pescoço implorava por ajuda para conseguir manter tudo no lugar. Não tinha como não ver, em Dona, um consolo; ali estavam dois corpos que cresceram antes da gente, que cresceram num solo fértil em espaços vazios; um corpo grande demais para o pouco que se consegue ser.

Quando percebeu que Dona ia espichar ininterruptamente, muitas coisas começaram a passar pela sua cabeça. Tinha medo de o quê uma suculenta enorme faria com os móveis, tinha receio de precisar regar a planta mais vezes e morria de pavor de uma visita surpresa de sua mãe e não conseguir inventar uma explicação-mentira para situação. Mas, sem ela notar, o extraordinário vulgarizou-se e Dona se tornou, para ela, apenas um companheirismo-incômodo.

A vida que Kátia executava, fora do apartamento, seguia precisamente como sempre seguiu. Trabalho. Apartamento. Trabalho. Apartamento. Mercado. Apartamento. Trabalho. Apartamento. Já a vida que se vive para além do que seus braços e pernas podem fazer, a vida que se vive dentro de si; essa se expandiu. Kátia começou a entreter os pensamentos que sempre deixava passar. Pensou que talvez estivesse na hora de trocar de emprego; não tem, particularmente, uma paixão pela escrita jornalística, nem pela escrita não-jornalística – mas, porém, contudo, não tem, particularmente, uma paixão pela não-escrita. Depois, pensou que talvez pudesse tentar contar suas insatisfações para sua mãe, contar como sente falta do seu amor-cruel, como queria entender suas dores, nossas dores, minhas dores. Agora, pensou que talvez estivesse na hora de começar a pensar pensamentos profundos sobre algo muito intelectual; sempre se impressionara com os colegas no trabalho que faziam as mais inusitadas questões – questionavam o que é a felicidade, o que é o amor, se meu azul é o mesmo que o seu – por que ela não tinha esses

questionamentos? Talvez devesse comprar o livro de tópicos de filosofia junto de autoajuda e aprender a pensar melhor. Mas, por agora, pensou se já podia tirar umas férias de pensar. E assim, ela com sua suculenta tinham uma cotidianidade delas. Passavam suas horas pois não tinha como impedi-las de passarem, mas, se pudessem, talvez escolhessem continuar como se não pudessem. E por alguns instantes todas as semanas, sentia que a vida era boa.

Kátia, até pouco antes do fim, não teve muitos dias fatídicos; se os teve, não os lembra, então não poderiam ser fatídicos. Toda vez que sua vida mudava, mudavam-se, também, suas memórias do antes para um antes-agora homogêneo. Então, quando acordou com um sentimento novo, um sentimento de mudança, Kátia teve diversos pensamentos inquietantes. Neste seu dia mais fatídico, sua mãe veio, de surpresa, visitá-la.

Lúcia era uma mulher como todas as outras mulheres que não eram como sua filha que era igual a todas as outras mulheres. Amedrontada, sentia pavor até de seu reflexo no espelho; rezava, desde muito garota, para que muitas coisas não ocorressem e, assim, nunca passou sufoco. Não sabia muito de religião e não frequentava lugar algum aos domingos, mas precisava de um alguém em algum lugar. Tivera, em alguma época, alguma profissão, mas sua vida nunca chegou a ser seu trabalho. Pendurou-se de passatempo em passatempo durante os melhores anos de sua vida até descansar eternamente na vida de seus filhos. Houveram homens que ficaram e que se foram, mas para eles, Lúcia não reservava muito além da mais crua apatia.

Remoía alguns ‘e se’s’ de tempos em tempos, remoía-os com tanto vigor que se arrependia de não ter se arrependido de algo antes. Não que tivesse algo que queria muito e que não conseguiu ter, mas queria ter querido algo a mais. Queria ter tido fome insaciável pelo grandioso, ocupado tantos espaços que perderia o controle de suas fronteiras. Se fosse maior, talvez pudesse ninar sua filha, engoli-la com seus enormes braços e a soltá-la sabendo que poderia alcançá-la a qualquer momento. Se tivesse algum querer por algo, talvez pudesse querer que sua filha quisesse algo além de um escândalo silencioso. Se tivesse mais tempo, um dia poderia querer não se satisfazer com uma vida de querer tão pouco.

Lúcia, porém, nunca deixou que suas angústias, sua crudez e sua existência morna fossem aparentes para o mundo exterior; talvez esse fosse seu único e maior orgulho. Era, sob todas as métricas externas, uma mulher plenamente feliz, plenamente casada e que para a qual só restava a espera pelo descanso eterno após uma vida pequena. Seu único e último querer que importava era que o mesmo destino esperasse sua filha, uma vida do tamanho que se tem. Assim, gozando de sua plenitude, foi fazer uma de suas visitas de rotina – mensais e aleatórias – à vida de sua caçula.

Calhou que essa visita foi no dia fatídico de Kátia.

Como tinha uma cópia da chave, Lúcia se fez em casa; sem esquecer de antes limpar o pé no tapete que tinha dado no chá de panela. Reparou em duas coisas assim que abriu a porta do apartamento: a enorme suculenta que tinha tomado conta de tudo e o rosto tenso de sua filha, em frente a um mar de verde, expressando desespero e pavor. Bloqueou toda e qualquer reação, deixando seus braços e pernas agirem primeiro. Pegou na cozinha a faca que também tinha dado no chá de panela, foi em direção ao pequeno vaso que segurava as frágeis raízes da suculenta e as cortou. Em seguida, avisou que tensionar os músculos da face daria rugas. Saiu do apartamento poucos instantes depois.

Sua mãe fechou a porta e o apartamento foi preenchido por um nada que ocupou todos os cantos. Kátia queria ter morrido junto. Queria que também tivessem dado um golpe fatal em seu frágil coração; um golpe não tão certeiro, um que acarretasse em uma morte lenta, em uma morte saborosa; aquela que deixa tempo para perceber que este é o fim, que este é o melhor dos fins, que não existiria nenhuma continuação possível.

Mas, não houve golpe algum e o tempo continuou tictactando.

A morte de Dona deixou muitos vazios em poucos instantes. E, a cada momento que doía para passar, Kátia passava-os querendo completar esse imenso nada que tinha sobrado dentro dela. Deitou com seu corpo esticado e ficou esperando ele endurecer, ele se unir a Dona; imóvel, eterna, completa; apagando todos os agoras e quaisquer depois.

Ela amou, sempre amou muito. Talvez nunca tivesse amado o que fez e o que faz e o que foi e, definitivamente, não amaria o que faria e o que seria; mas amou. Ao menos sabia que saberia se não tivesse amado, mesmo sabendo de muito pouco. Não sabia o que era existir, mas sabia que Dona não existia mais, que tudo que restou era um grande amontoado de planta sem vida no seu arredor. E, neste fim, não pensava em sua mãe, não pensava em vingança, não procurava porquês.

Tudo que importava era que, agora, estava derrotada. E, então, Kátia descobre o que é o não-amar. O não-amar é diferente de qualquer outro sentimento. Ele te encolhe e te amassa e te deixa tão pequeno. Kátia, assim que sente essa pequenez, tenta esticar seus braços até o limite, estufar sua barriga como montanha e estirar seus joelhos; mas, mesmo assim, esse novo sentimento não cabe em si. Não tem forças nem para expulsar o sentimento aos berros nem para abrir buracos em si para o sentimento ter por onde sair. Não lhe resta muito. Kátia carrega só a agonia de não caber dentro de um corpo que encolheu com a gente dentro. Com pouco espaço, o usa para querer a vinda do doce alívio que um dia tem de chegar.

Sobre a autora: Triz está no bacharelado em física e quer ler novamente Stoner do John Williams.

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