Aves Azuis

As cortinas se movimentavam rapidamente, refletindo ágeis frestas de luz que escancaravam a poeira úmida no ar. Elise encontrava-se estática na poltrona no canto do quarto, olhos mortalmente fechados e apenas um pequeno sorriso nos lábios denunciava que respirava.

Uma mosca pousou em sua mão com a graça suja e habitual, olhando-a com uma indiferença disfarçada; veio trazer-lhe um aviso: a carne podre debaixo da cama começara a feder.

Tinha menos de um dia, dariam por sua falta em pouco tempo. Mesmo assim, era impossível levantar, um peso absurdo tomava-lhe os ossos, nem mesmo sua cabeça aguentava-se ereta no pescoço, fazendo-a fitar o teto manchado de mofo em uma posição não muito confortável.

Um grito histérico ecoou pelo corredor e chegou rapidamente até Elise, que se manteve sentada mas agilmente inclinou as costas, desesperada para ouvir vozes. Pelo ranger das tábuas de madeira conseguia distinguir perfeitamente os movimentos das três únicas habitantes da velha pensão, sendo uma delas a dona do estabelecimento. Corriam desordenadamente, com a agitação nunca antes presenciada em criaturas tão taciturnas e silenciosas.

-Não consigo encontrá-lo! Procurei em todos os lugares. Até mesmo sua comida de ontem está intocada. – Disse Gertrude, irmã mais nova da proprietária.

Agora, com os grandes olhos verdes abertos, ela se concentrava em não sufocar diante da visão do quarto sujo e terrivelmente pequeno; apenas com um armário escancarado, uma cama estreita, uma escrivaninha sob a janela e a poltrona que ocupava no momento. Ela observou a enorme quantidade de papel que quase afogava seus móveis e a fazia sentir como se estivesse em um ninho de pássaro. Era como se sentira a maior parte de sua vida, como um pássaro desengonçado e cujas asas não possuíam outra função se não a de fazê-la desejar por um mundo que jamais alcançaria. Enquanto isso, continuava na mesma busca letárgica e irascível de qualquer coisa que se aproximasse ao que Elise imaginava que seria voar. Aquela liberdade que jamais poderia ter, pois fora condenada a manter os pés enraizados na terra como um verme pútrido.

Após tantas tentativas frustradas de tentar desfazer-se em ar, ela pensou por um instante que talvez devesse se obrigar a permanecer ali para sempre, naquele quarto imundo e assombroso, e com alguma sorte também asfixiaria em seus próprios escritos ou naquele cheiro que já começava a impregnar às tábuas do assoalho. Talvez com o tempo ela sentisse que seu corpo cairia no plano das coisas reais e tocáveis, como uma âncora que submergisse e pudesse enfim ser envolvida por algo, pudesse finalmente deixar o ar entrar em seus pulmões e preenchê-los com autoridade.

A realidade é que ela passava dias dissecando em sua cama, apenas olhando para a árvore retorcida que se encontrava em frente a sua janela e era morada de pequenos pássaros azuis. Em seu estado febril, o bramir das aves era como sua própria voz, como o último sopro do elemento essencial da vida: esperança. Buscava por eles em todos os lugares, como um órfão que vive eternamente em procura, e o cair da noite era sempre o momento mais terrível, em que o silêncio a jogava novamente em uma espiral de terror e solidão.

Voltara a ser a única de sua espécie, estava sozinha em todo o mundo e jamais poderia sair dessa gaiola.

Quando tudo já estava perdido e Elise se encontrava nos estágios finais do luto, uma bola de fogo ressurge no céu e, com todo seu sadismo e autoridade, faz reviver o mundo.

Dias atrás, prosseguindo em seus hábitos de vida e morte, ao sair de seu quarto deparou-se com um pequeno objeto em sua porta, ao aproximar-se viu que era um de seus pássaros, com as penas azuis sujas de sangue. Sua visão ficou subitamente turva e uma dor agonizante lhe tomou, a deixando de joelhos pelo o que pareciam ser horas.

Como se estivesse sendo perseguida, os pássaros mortos estavam em todos os lugares; mais foram deixados em sua porta, um no parapeito de sua janela, na calçada em frente a pensão. Durante seus sonhos via apenas sangue e penas e gritos horrendos que a atormentavam, não havia fim para todo esse pavor.

Ela se mantinha em uma posição retorcida no canto do cômodo, abaixo de seus olhos manchas vermelhas haviam tomado forma e seu corpo se tornou quase esquelético sobre as roupas surradas. De repente, por entre delírios, ela ouve o familiar sino pela porta entreaberta, vindo do corredor. Então entra em seu quarto o temido felino do estabelecimento, com passos macios e olhos de um violeta malicioso, uma cor que mesclava um azul profano de pássaro e um vermelho cínico de sangue. A cor que denunciava seu crime.

Menos de um suspiro ocorreu antes que Elise atacasse como uma criatura diabólica, com a fúria de mil sois e um desejo irremediável de justiça. Nada poderia condená-la naquele momento pois sua ação regia a própria essência da natureza, a de defender e atacar em prol da perpetuação de sua linhagem.

Não foi um ato que procedeu de um sentimento vil ou de uma vontade desonrosa, ela apenas fez o que lhe restava a fazer, a única coisa que qualquer um acorrentado pelo fardo da humanidade faria: tentar agarrar o último resquício de vida que lhe restava e lutar, lutar por amor.

Voltamos enfim ao momento por onde iniciamos. O sol começava a se pôr e o tempo estava correndo rápido demais, a escuridão derramava a culpa de milênios em seus frágeis ombros e Elise quase se rendeu a punição que lhe esperava ao abrir a porta, sabendo que perdão sempre fora algo distante demais para que alcançasse e que jamais poderia ser salva.

Porém, antes do último feixe de luz esvair-se, Elise escutou um cantar singelo vindo da janela, onde um pequeno pássaro se encontrava suspenso na ponta do galho mais alto da velha árvore. Ele cantava a ela sobre ausência, liberdade e tudo que a esperava do lado de lá do beiral, tudo que seria seu se apenas se permitisse tirar os pés do chão.

Deslizando as pernas sobre o parapeito, Elise se surpreendeu por encontrar pequenas penas presas em seus tornozelos, suas omoplatas doíam pela deformação das asas e sua visão agora alcançava muito além das ruas conhecidas.

Quando finalmente soltou seus braços, sem medo ou pesar, seu corpo foi abraçado pelo ar e enfim, após uma vida carregando um saco de pedras que não lhe pertenciam, não haviam mais pesos em seus pés ou carne em seus ossos – e agora era possível voar.

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