Ofélia

Encontrar-se nas superfícies a sua volta era como procurar um reflexo de algo que lhe pertencia sem nem mesmo ser conhecido ao toque. O mais próximo que já chegou foram os pequenos intervalos onde o mundo se resplandecia na graciosa glória dos detalhes. Não que eles não estivessem ali antes, mas agora se mantinham abertos na mesma linguagem de sua alma, uma brecha para que pudesse ler como um espectador qualquer. Não era necessário a arte de criar, pois toda a sua arte se expressava bem diante de seus olhos e só o que restava era a genuína apreciação.

Ofélia se mantinha relutantemente em cima da velha árvore, tão alta que poderia causar-lhe tonturas ao olhar para baixo, ela tinha tal reflexo como o impulso de subir mais um galho, ultrapassando seus limites com a imposição de não se refrear pelo medo. Vira de perto o medo de construir parede por parede o que costumava chamar de lar, o tornando macilento e impenetrável a fragilidade que uma criança exercia. Porém, a opacidade só costumava rondar os arredores da casa, ali as cores se sentiam menos tímidas a aparecerem e reluziam com a simplicidade de uma amiga conhecida e esperada.

O sol se punha com a satisfação de ceder lugar à sua companheira, dando ao menos um pequeno conforto à corpulenta escuridão que parecia emergir dos vales ao redor. A luz se esvaía com a chance de ver mais e Ofélia era obrigada a se proteger do frio que ultrapassava o fino vestido, já rasgado na bainha, moldado pela natureza e a mercê de uma mente pouco responsável e sedenta por viver.

Voltava caminhando lentamente, prolongando a sensação de inspirar com facilidade. Sua cabeça era apenas preenchida pelo suave som do farfalhar das folhas, zombavam dela por possuírem inerentemente a liberdade que lhe era tão desejada. Ela nunca se permitiu ficar longe o bastante de suas vozes, eram parte do que a ancorava a minuciosidade da existência, a raiva não podia alcançá-la enquanto estivesse concentrada em emoções cruas, com nenhuma justificativa além do mais puro ardor que lhe abrasava o corpo. Chamar de amor nunca seria lírico o suficiente.

Qualquer tipo de reconhecimento em alheios lhe causava angústia, como se a superficialidade de sua natureza lhe fossem correntes a impedindo de progredir, progredir no sentido conotativo, afinal era inexpugnável até mesmo com a maior magnitude de pureza chegar a composição atávica que enxergava, discernindo-se como um dos elementos fundamentais e renegando ao nome científico catalogado em seus genes. Infelizmente isso trazia uma inegável ignorância a conquistas mundanas, para ela os conceitos de valor e efemeridade nunca andavam acompanhados, se negando a reconhecer a literatura, a dança e até mesmo a música, não representavam nada além da incompetência humana em exalar a espiritualidade intrínseca no mundo ao redor, amplo o suficiente e ainda sim restrito a seleção natural. Apenas aqueles que negassem a carne e abdicassem do privilégio de criar poderiam proceder, restringindo sua arte apenas ao que era visto e jamais escrito ou composto.

Subindo os degraus, Ofélia considerou a possibilidade de fazer sua presença tão tangível como as flores mortas na sala, tão fúnebre como realmente se sentia. Passou pela porta e automaticamente sua postura de escárnio veio à tona, os olhos ligeiramente mais afiados e enrijecidos, causando desconforto em quem lhe olhasse, exatamente como o esperado.

Porém, os únicos observadores de sua interpretação fajuta eram os quadros podres nas paredes, rindo silenciosamente da tentativa. A casa estava vazia, dando a prerrogativa de poder abaixar a guarda e olhar cuidadosamente em volta: continuava quase a mesma, talvez a real diferença estivesse nos olhos dela, antes as pequenas imperfeições eram devidamente encobertas pela capa da fantasia, tingindo tudo com um tom enjoativo de rosa.

Chegando ao seu quarto, atravessou a soleira e abriu as janelas rapidamente, não se permitindo ficar sozinha com a pesada massa de ar, ameaçando-a com a diafaneidade de algo que não se pode lutar contra. Nunca lhe era permitido sentir a completa solidão, a solidão era o privilégio de todos aqueles com amplitude interior suficientemente espaçosa para abrigar sua forma. Impressionava-lhe como o vazio poderia ocupar espaço, um espaço que não possuía, sua própria natureza era limitante por essência. Se fosse longe demais poderia se perder na imensidão do consciente. E retornar a primitividade atual seria difícil, o conhecimento nunca cobrava um preço baixo.

Ainda viveria por muitos anos tropeçando exatamente nas mesmas pedras, trilhando exatamente o mesmo caminho e se perdendo exatamente na mesma curva.

A curva onde o familiar subitamente se transformava no desconhecido, impedindo-a de prosseguir.

Não há um final esperado, a melancolia de sua alma lhe servia de um estranho conforto, talvez a felicidade aguardasse do outro lado, mas ser feliz sempre foi simples demais.

Sobre a autora: Maria Dressano é aluna do bacharelado e adora besouros.

👀 Não perca as Novidades do IFUSP!

Não fazemos spam! Vamos te enviar APENAS um email por semana com as atualizações de repasses e/ou postagens da semana.

Abrir bate-papo
1
Escanear o código
Olá 👋
Vem falar com o Cefisma!