Reconcilio paulistano

Reconcilio, ou, acerto de contas com o desacerto;

Como poderia negar-te de uma penada, se este teu inverno sou? O calor busco pois o frio é meu: mas então é no frio que posso ser. E o calor me seria estranho, e o fogo me queimaria: teria então de congelar o fogo, e é em verdade que só busco flamas por não ser, eu mesmo, flama ou dos que se regozijam com flamas;

Como poderia negar-te de uma penada, se é tua brisa praiana que sou? Brisa praiana, tarde nublada: não vejo-me no espelho. Me aflijo pelo verde, mas só posso afligir-me por ser eu mesmo folha seca, e ao verde não pertencer. Então o próprio verde significa para mim um querer que não se pode ver satisfeito: pois não pertenço ao verdume;

Como poderia negar-me de uma penada se é em mim que gozo? Só posso desejar-te por não ter-te, e em verdade se a tivesse não seria a mim, mas então nem tu mesma te serias. E tu me serias estranho, e o calor, e o verde: só n’onde não é que posso ser, e é no amarelo que estou;

Está frio e chuvoso. Não gosto disto que está: este inverno que regurgita a si mesmo nos últimos suspiros choca-se com as primícias de uma primavera ansiosa: tem-se então o negror destas pesadas nuvens a chocar-se com o lilás encantador das pequenas flores. Não sou este choque: é prisão para mim todo este diferenciar desavergonhado e vingativo;

Busco uma angústia última que já de absoluto me encontra. Ser livre: mas é exatamente por isto que devo sofrer, pois que o ser-livre sofre pela possibilidade da prisão. Não porque teme ser preso, mas porque flerta com uma tal eventualidade. Prisão é morte, e é a isto que todos buscamos: não é a vida pesada demais para nós?

Temo que sejam estes os termos de meu contrato. Meu reconcilio é antes uma denúncia: denúncia de minha própria covardia. Sei exatamente como as coisas se me apresentam, mas como poderei enfrentá-las? Não: me parece mais confortável morrer. Nos termos do homem, a morte: felicidade, adaptação;

Nego a morte enquanto estou ainda acordado. Nos poucos momentos em que durmo sonho com coisas inatingíveis. Sonho com você, em um certo sentido, mas não desses sonhos de amor: sonho que falas. Sim, não a vejo, não a sinto. A ouço. E tu me fala e condena e destrói, me destitui de toda alma. A caneta que assina minha alforria me obriga a renegar o sofrer. Mas o fogo que me queima me aquece;

Como poderia negar-te de uma penada? Não é por ti que escrevo. Agora me desafogo de ti, por um momento. Um pequeno momento, momento em que te odeio. De fato, meu amor já não é mais daqueles sorridentes, mas um amor de sono – amor de toca e casco. Me arrasto a ti e escolho, sou quase puritano. Esta imagem mesma já se perdeu de valor para mim: meu puritanismo era, outrora, uma mentira, e no agora se perdeu no desimportante. Mas exatamente por isso é puritanismo posto;

O valor se perde porque já vislumbro a liberdade. Mas porque vislumbro a rejeito, me agonizo, a nego, a atiro para longe como uma criança de colo – porque me ameaça o colo. Você deve gozar-me pelo que digo e faço. Quem sabe não sou mesmo tacanho, inexperiente, vulnerável demais em minha própria tolice? No fundo também conheces minha verdade – nem tu me podes negar de uma penada. Mas eu tenho que me livrar de ti se quiser ser livre. Será possível que nos aprazemos pela dor em si?

Serei livre, e no entanto continuarias não sendo para mim uma imagem, um símbolo. És, para mim, ainda que não sejas nem mesmo para ti. É a ti que falo, e falo profundamente. Mas meu falar é um tanto escondido, um tanto envergonhado, um tanto sutil e fugaz. Quem sabe encontrarás-me em ti algum dia, e então eu mesmo já me verei livre, ou seja, nada!

Não penso em nada. Por que, então, não consigo dormir?

Sobre o autor: Luiz é bacharelando pelo IFUSP e mineiro.

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