Segunda casa

São muitas as definições de “casa” usadas no cotidiano dos falantes de português, tantas que algumas não cabem exatamente em dicionários, mas encontram espaço nesse texto. Aqui, por ousadia, se justifica porque, hoje, não cabe à universidade o nome “Casa do Conhecimento” ou “Casa do Saber”.

Uma casa não é apenas um espaço onde as pessoas moram. Uma casa é um complexo lugar no espaço e no tempo, porque o ser humano habita no espaço e no tempo. Basta notar que onde você mora é mais sua casa hoje do que quando você se mudou para lá. Há uma série de objetos, relações e memórias construídos na sua moradia ao longo do tempo. Um lugar no sofá, momentos sozinho no quarto, refeições em família, comemorações entre amigos, brincadeiras, olhares e sorrisos, tudo isso e não apenas um endereço e uma mobília compõe uma casa. Certamente, quem já se mudou tem a plena convicção desse conceito — se mudar despertaria menos sensações se fosse a simples alteração de CEP.

Essa descrição de casa permite entender melhor outros lugares. Se uma casa é um lugar em que se convive consigo e com outras pessoas, se compartilham momentos e memórias e, dessa maneira, se constrói, assim outros espaços poderiam ser uma casa também. Se um estudante universitário passa 30 horas por semana na universidade, ela deveria ser uma segunda casa para ele.

Apesar disso, dificilmente se vê alguém afirmar que se sente em casa neste contexto. E a universidade é apenas um exemplo. Pense no local de trabalho, onde se passa a maior parte da vida adulta. Pense nos longos deslocamentos em transportes públicos ou engarrafamentos. Pense até mesmo nos shoppings centers, praças de alimentação e academias que frequentamos. São espaços funcionais, de transição, de passagem.

Se vive, cada vez mais, imerso em uma geografia de não-lugares: ambientes impessoais, muitas vezes padronizados, projetados não para a construção de vínculos, mas para a eficiência (e muitas vezes, nem isso) de uma função específica — consumir, trabalhar, estudar, transitar. São espaços que não carregam história pessoal, que não acolhem as pessoas como indivíduos completos, mas como usuários, clientes, alunos ou funcionários.

Paralelamente, se é lançado em não-tempos. Os ritmos acelerados, a pressão por produtividade constante e a fragmentação das jornadas corroem a possibilidade de momentos de pausa, de convívio orgânico e de construção de memórias compartilhadas. O tempo deixa de ser um tecido onde se bordam experiências para ser uma linha de produção a ser otimizada.

Essa combinação perversa de não-lugares e não-tempos joga o indivíduo para dentro de si mesmo e, ao mesmo tempo, corrompe a sensibilidade . A impossibilidade de criar raízes, de pertencer verdadeiramente a um espaço e a uma comunidade, gera um individualismo não por escolha, mas por defesa. A solidão não é mais apenas a falta de pessoas ao redor; é a sensação profunda de que, mesmo rodeado de gente, é impossível transformar um espaço em um lugar próprio para si aos outros no mesmo espaço, nem aquele tempo em um momento comum, às vezes, nem mesmo dentro da própria casa. É a nostalgia de um lar que não se restringe a um endereço, mas que parece cada vez mais difícil de construir em um mundo que valoriza a velocidade e a utilidade acima da existência e do afeto.

Nesse cenário, a universidade não pode ser a “Casa do Conhecimento” ou “Casa do Saber”. A lógica dos não-lugares e não-tempos não apenas afasta as pessoas da universidade, mas afasta a própria universidade de sua missão. A tirania da produtividade e dos prazos curtos asfixia a curiosidade desinteressada e o debate profundo, reduzindo o saber a créditos a cumprir e artigos a publicar — uma máquina de transformar corpos e mentes em ferramentas utilitárias de reprodução de conhecimento superficial e igualmente utilitário. Paralelamente, a impessoalidade do não-lugar fragmenta o conhecimento em disciplinas estanques e esvazia os corredores do debate espontâneo, impedindo a formação de uma comunidade de aprendizes, à exceção de parcos oásis em que a convivência real existe. Ao priorizar a eficiência em detrimento do convívio e a produtividade em vez da profundidade, a universidade se priva do tempo lento da reflexão e do espaço fértil do encontro — os únicos ambientes onde o conhecimento verdadeiramente brota. O que resta é um simulacro: um saber estéril, desconectado das grandes questões humanas, que não acolhe e, por isso, não consegue reter os espíritos mais brilhantes, que fogem do desencanto em uma quase sempre frustrada busca de um autêntico lar para suas ideias.

Autor: Marcos Gabriel

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